Querido Jack *,
Estou no Algarve, numa paisagem onde a terra acaba e o mar começa, acordo cedo porque o meu corpo e a minha cabeça estão com as 6h45 do estúpido horário da escola das crianças. Tentam programar-nos logo desde muito cedo para assim entrarmos mais facilmente no mundo automatizado do trabalho, no mundo dos adultos. No mundo do Capital. É muito idiota esta nossa feição.
Dois pombos poisam no muro da açoteia onde estou – açoteia é um terraço no topo de um edifício – parecem enamorados, parecem procurar privacidade ao sol, tal como eu, que me levanto para lhes dar os restos da torrada com manteiga, mas assim que desenho o gesto do movimento, afastam-se. Primeiro um e depois o outro.
Oiço o som da cidade misturado com o chilrear de pássaros, ares condicionados, carros …
Estou no Algarve, numa viagem de trabalho, mas o pano de fundo sonoro facilmente me transporta para outras paisagens, para essas viagens de se ser e de se deixar ser, de se desejar unicamente estar vivo, a vida dada a conhecer num raio de sol. Um dia gostaria de escrever um livro, um livro sobre viagens, sobre caminhos – como tu – há qualquer coisa nos lugares que não nos pertencem, nas pessoas que não me pertencem, na paisagem que se mostra tal como é, sem desejo algum para que seja diferente, que me fascina como nenhuma outra coisa. Lugares onde desconheço e sou desconhecida. Ainda que no fundo eu deseje ter sempre para onde voltar, ter sempre alguém- não necessariamente à minha espera, mas alguém do outro lado para o caso de me perder, alguém para me procurar e talvez encontrar-me – que dê sentido à viagem. Não sei se não acabo por ser mais eu nesses lugares que não tomo como meus, com pessoas que não tomo como certas, pergunto-me se não serei mais tua, mais de todos ao ser assim mais eu.
A Alface acordou pouco depois dos sinos terem anunciado as 11 horas. Tão engraçado os sinos ainda tocarem em pleno século XXI – é isto a Europa, Jack, sinos a tocar história, a dar música à passagem de algum forasteiro, que se desvie do caminho da sensatez. Os rapazes (o Tiago e o Augusto), saíram para tratar da técnica, temos ensaio às 14 horas. Penso que tenho que ir tomar banho. Penso no livro que li ontem, muito lindo, foi um presente do meu João, trouxe-o do Brasil para onde voou depois de termos regressado juntos da aventura na Suécia. Todos juntos! E que aventura, podia ter acabado mal, mas não foi nada, já passou. Aprendemos a amar-nos ainda mais.
Dizia eu do livro muito lindo que recebi, só o título já me bastava – “Viajo porque preciso, volto porque te amo”. Liberdade não é uma palavra fácil, mas beijar é doce. Chorei ao ler esse livro, tem uma poesia muito especial, tem uma imagem e uma composição muito tocantes, todo o modo como as frases são separadas e encadeadas nas imagens das viagens, de encontro e de perda, é preciso caminho para o encontro. E penso nos livros que comprei ao André Príncipe, nas suas fotografias e nos filmes das suas viagens, paisagens em sexo de estrada, vida e morte, perderes-te para te encontrares. Penso nas escolhas que cada um terá de ousar para ser (seguir sendo). A Clarice, diz que “ser feliz é uma grande responsabilidade, pouca gente tem coragem”.
Depois do livro vi o DVD do filme que veio na edição, os rapazes tinham ido às compras e a Alface dormia a sesta ou se calhar também lia, na cama de dossel que lhe calhou. Encheu-me também esse filme, apesar do dramatismo da voz do narrador teatralizar talvez demasiado o que na poesia da leitura do livro me chegou mais real. Por outro lado, o filme acrescenta um poder às imagens que ao ler-se o livro se perde um pouco na carga das palavras. Um paradoxo, como a beleza que anda por aí à solta.
Quando fui para a cama, depois de termos tentado algum divertimento na noite Algarvia – que só deu para um café, um whisky e algumas fotos que podem vir a ser importantes em alguma memória futura – voltei a ver o filme, acho que o vi ao mesmo tempo que o João que estava em Lisboa com as crianças, enviei-lhe o link do YouTube pelo Skype e dissemos até amanhã. Adormeci a ver o filme e já me apetece ver novamente, talvez um dia destes decida vê-lo de novo. Digo um dia destes porque há estes dias e há os outros dias, que são diferentes destes… Porque na verdade, Jack, o que me mata é o quotidiano.
Mas Jack escrevo-te principalmente porque este ano a frase do Festival Verão Azul é pela estrada fora, faz-nos sentido o conhecimento assim a percorrer paisagens, lugares, pessoas e aqui na Europa é ainda mais fácil caminhar de um sítio a outro – já dizia G. Steiner – “as paisagens têm a nossa dimensão e os cafés ainda são importantes, continuam a dar sentido à Europa” – mas no Rossio o café Gelo já há muito começou a derreter. E a na Brasileiras turistas fazem peregrinações para as selfies com o Pessoa. Estamos mais parecidos uns com os outros e talvez por isso mais sozinhos, mas não sei muito bem como falar disto. Agradeço todos os dias continuarem a existir poetas.
Por aqui ainda se caminha ou tenta-se caminhar para reflectir, mas as coisas não se estão a pôr bonitas, milhares de pessoas perdem a vida a tentar nadar até à Europa, os piratas que no mar os tentem salvar são presos e a tua América sobe muros a cerrar caminhos. Tiveste a Guerra do Vietnam, e agora as guerras são bem mais dissimuladas, e há a crise climática, é preciso lutar pela sobrevivência da nossa espécie, que na realidade foi quem fodeu isto tudo. A América assassinou o Martin Luther King, o Brasil assassinou a Marielle Franco, alguém que lute pela mudança continua a arriscar balas ou 4 paredes, se és diferente da norma tens que lutar muito e nalguns lugares tens que correr ou mesmo fugir, de pedras, de cães, de cidades, de países, de quem tu és. A cobiça dos minerais preciosos continua a matar indígenas e a devastar o nosso pulmão. A vida de plástico – de que tanto te queixavas – continua a soterrar-nos, agora literalmente. As múmias continuam vivas e não há festa ainda à vista, mas acredita-se sempre que estará para breve pois apesar deles “amanhã será outro dia”.
Lembro-me que tenho o café a ficar frio e dou um gole, e agora tenho mesmo de ir tomar banho.
Querido Jack, já vês que por aqui a paisagem não mudou assim tanto e percorrê-la continua a ser o melhor o caminho, “segue-me estou mesmo atrás de ti”.
Penso em ti.
Beijos
Sempre
tua ANA
p.s. um abraço a todos os companheiros de estrada (na vida e na arte) que aqui não foram mencionados.
* esta carta foi originalmente escrita em 2016, em Viseu, dirigida a um caro amigo, André Uerba, e posteriormente adaptada (com cortes e acrescentos) para este editorial dedicado a Jack Kerouac.